Fim do neoliberalismo, a virada
Revista Caros Amigos , julho de 2000
Houve outra “virada” na própria história do planeta Terra, que a grande imprensa e analistas simplesmente ignoraram. Reunidos na capital alemã em princípios de junho, os chefes de Estado dos sete países ricos, agrupados no chamado G-7, assinaram um tratado rejeitando as políticas neoliberais Já chamado de Consenso de Berlim, como substituto do Consenso de Washington que deu origem à onda neoliberal, o acordo chegou até a ser noticiado pelos jornais, no dia de sua assinatura – mas depois o silêncio foi total: nem uma análise, nem uma entrevista, nem uma suíte, nada de nada. No entanto, as conseqüências para os rumos da humanidade são óbvias (até a próxima “virada”, claro): são enterradas as teorias que dominaram o mundo nos últimos anos pelas quais o Estado deveria interferir o mínimo na vida dos países, deixando que “o mercado” se incumbisse de fazer todos os ajustes na economia – inclusive quanto à criação de empregos e melhora na distribuição da renda. As questões sociais foram varridas do mapa, aceitando-se a impiedosa “exclusão de centenas de milhões de seres humanos”, em nome da “eficiência” e da “globalização” impulsionada pelo FMI e Banco Mundial, a onda neoliberal, como muitos críticos previam, no final das contas não passou de uma gigantesca gazua que os países ricos, e não apenas os EUA, mas também e principalmente a Europa, usaram para tomar de assalto os recursos naturais e depois até as fábricas de pão de queijo dos países “emergentes”, que, mui obedientemente, viraram imergentes.
Mais uma vez, vai-se tentar apresentar a reviravolta como uma “surpresa”, algo surgido da noite para o dia. Na verdade, ela tem tudo a ver com outras mudanças radicais no “jogo do poder” internacional, também ignoradas nos anos recentes, e para as quais esta coluna, mais de uma vez, tentou chamar a atenção. Em síntese, o neoliberalismo está sendo enterrado como conseqüência do aumento do poderio econômico e político da Europa, que coincide com o agravamento dos problemas da economia dos EUA (mantidos na sombra por uma prosperidade com pés de barro, e pelo ensandecido boom nas bolsas de valores). A Europa passa a dividir, de fato, a hegemonia mundial com os EUA – e o euro passa a fazer frente ao dólar, como moeda de aceitação internacional.
AS MUDANÇAS POLÍTICAS
Todas essas mudanças marcantes, ao longo dos últimos dois anos sobretudo, foram ignoradas à direita e à esquerda. No caso da direita,o silêncio talvez tenha sido e continue a ser deliberado, já que toda a sua máquina de propaganda esteve voltada para vender a idéia de que o modelo neoliberal era o caminho certo para o nirvana da prosperidade mundial, apresentando os EUA como a melhor prova dessa tese (dentro da “lavagem cerebral” neoliberal, vale relembrar a matéria de capa sórdida publicada em 1999 pela tradicionalmente respeitável revisa The Economist prevendo “crise iminente” e terremoto social na China...). Se a direita defendia seus interesses, a esquerda, como sempre, mergulhava em discussões intermináveis, ótimas para “seminários”, sobre qual a chamada “via” que os partidos socialistas europeus estavam trilhando: segunda, terceira, quarta, quinta? Blair é um traidor? Jospin é um burguesinho? Esses debates intelectualóides impediram que se enxergasse outro rato histórico, certamente o nascedouro do Consenso de Berlim, ou o começo do fim do neoliberalismo. A partir do final de 1998, quando Schröeder venceu as eleições na Alemanha, todos os principais países europeus passaram a ser governados por partidos de esquerda. Menos espetaculosa que a queda do muro, dez anos antes, essa hegemonia dos partidos socialistas – de que “via” sejam – obviamente teria reflexos nas decisões políticas da Europa, entre as quais a rejeição às teorias neoliberais eram favas contadas. A guinada já estava em marcha. A homogeneidade de objetivos entre os governos de esquerda contribuiu para acelerar a implantação do euro, em janeiro do ano passado, com a superação de conflitos “nacionalistas” entre França e Alemanha, por exemplo.
AS MUDANÇAS ECONÔMICAS
Em economia, a aparência freqüentemente pode ser o oposto da realidade. Nos últimos anos, o noticiário sobre a “prosperidade norte-americana” assombrou o mundo. E a “fraqueza” do euro diante do dólar impressionou os incautos. Tudo aparência. Há décadas, a economia norte-americana mantém seu crescimento à custa de importações maciças, muito acima do valor das exportações, acumulando rombos fantásticos em sua balança comercial. Qualquer país nessa situação deficitária é forçado a desvalorizar sua moeda, para encarecer (e reduzir) as importações e baratear (e aumentar) as exportações, em busca de equilíbrio em suas trocas com o resto do mundo. Os EUA sempre fugiram à regra, simplesmente emitindo dólares para pagar suas compras – o que, já na década de 60, faria o presidente francês De Gaulle chamar o dólar de mero “papel pintado”. Ou fez o ex-ministro americanófilo empedernido, Roberto Campos, chamar os EUA de “caloteiro mundial número um”, no ano passado. Até 1998, o déficit mensal dos EUA com outros países chegava a incríveis 15 a l8 bilhões dedólares –por mês. Em 1999,ele saltou para os 25 bilhões de dólares, e hoje está na faixa dos 30 bilhões de dólares. Por mês. Já em 1999, o BIS, banco central dos bancos centrais, em seu relatório divulgado em meados do ano, dizia que a situação era insustentável, e que o dólar deveria ser desvalorizado no mínimo em 23 por cento em relação ao euro, e em 28 por cento em relação ao iene japonês. Essa, a lógica econômica. Mas aconteceu o contrário: o dólar continuou a valorizar-se, e o curo a despencar. Por trás dessa tendência, esteve presente um fator que o cidadão comum dificilmente consegue entender: a queda do euro interessava à União Européia, exatamente para baratear suas exportações e encarecer as importações. Isto é, uma estratégia que chegou a provocar protestos oficiais de Clinton. Na prática, o euro desvalorizado permitiu aos países da União Européia baterem recordes de exportação, manterem a economia (e o emprego) em crescimento – e acumularem um saldo positivo na faixa de 200 bilhões de dólares anuais. Enquanto isso, os EUA apresentam um “rombo” de 300 bilhões de dólares e que caminha para os 360 bilhões de dólares em doze meses. O que a Europa tem feito com essa enxurrada de dólares? Basta olhar ao redor: suas multinacionais e bancos vêm comprando empresas e “concorrentes” em todo o mundo, inclusive nos próprios EUA. Enquanto os holofotes estavam concentrados na “prosperidade norte-americana”, a Europa ampliava seu poder ao redor do mundo, pela presença crescente de suas empresas também em áreas estratégicas como energia, petróleo, telecomunicações. Os EUA já não detêm a hegemonia econômica absoluta – nem a política, no mundo. A mudança se refletirá sobre o dólar, e seu poderio irreal.
Além da ascensão européia, não se pode ignorar dois outros fenômenos que contribuíram para o enterro do neoliberalismo. Primeiro: os relatórios anuais do Banco Mundial e FMI, de outubro do ano passado, que mostravam o avanço da miséria em todo o mundo, simultaneamente ao aumento do fosso entre países ricos e pobres, contrariando todos os mitos das vantagens da globalização e “sabedoria do mercado”. Segundo: as gigantescas manifestações de rua, primeiramente em Seattle, contra essas mesmas conseqüências da “onda neoliberal”. Um cínico diria finalmente que, agora que “já comprou tudo”, a Europa pode dar-se o luxo de ser boazinha com suas novas colônias, como o Brasil de Ferdinand Henri...
Fonte: http://www.aloysiobiondi.com.br/spip.php?article1081&var_recherche=O%20brasil%20privatizado
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